domingo, 10 de novembro de 2019

Wannabe

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"(...)
Amiga: Quero ver se você queria ter a minha infância? hahaha
Eu: Infância? É uma coisa que queria ter tido. Não importa qual, mas queria não ter sido privado de tudo que quis fazer ou que gostava. Não podia fazer nada, pois tudo que gostava, era "coisa de viado", e eu podia apanhar, e apanhava, ou podia ficar de castigo, e ficava. Que bom que você teve infância, pobre ou de elite, ao menos você teve.
Amiga: O.O
Eu: Você tocou num dos meus traumas de vida. Só isso! ¯\_(ツ)_/¯
Amiga: =(
Eu: Vou nem falar mais sobre, porque eu te respondendo, já comecei a chorar.
Amiga: Desculpa, mano! Melhor para com essa conversa, então! Vá tomar sua caipirosca e ser feliz! S2"

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"Eu: Desculpe por ontem. Não consegui controlar meu trauma, preso em mim. Ele começou a bater as asas e gritar que existia, mas consegui aprisioná-lo de novo.
Amiga: Não se preocupe, mano! Te entendo perfeitamente. Acontece isso comigo também. Te entendo S2. Não precisa se preocupar! S2
Eu: Obrigado por me entender e me acolher. Estava aqui vendo os clipes de Backstreet Boys e das Spice Girls, momentos da minha infância (calculando, agora, percebo que era da adolescência, mas para um efeito mais dramático, porque preciso resgatar essa drama, continuarei associando-o à minha infância) que foram enclausurados por meu pai. Dizia que não gostava das bandas, mas lembrei que sempre preferi as meninas. E, vendo os clipes, lembrei-me que meu sonho era ser a Emma. Depois percebi que algo gritava querendo ser a Victoria, mas ela sempre era muito nojenta nos clipes, e me culpava por querer ser a nojenta. Acabei escolhendo a Emma. Sonhava com as plataformas da Emma.
Amiga: Eu amava as Spice Girls S2 S2 S2. Imagino, maninho. Agora você pode ser o que você quiser! S2"


Eu nunca pude fazer nada do que queria ou do que gostava. Meu pai dizia ser "coisa de viado"; minha mãe, me deixava ser quem eu era e sempre fui, mas tinha o receio de eu ser discriminado. Ela sempre me defendeu, sabe? Quando vinham pra cima de mim, eu via minha mãe se transformar, eu não a reconhecia. Sentia-me culpado por qualquer coisa que fizesse, que geraria o "mulherzinha", daí minha mãe virava um bicho, e eu pensava que a culpa era minha por ela estar daquele jeito. Eu tinha que evitar dela parecer a famosa onça defendo as crias. Eu tinha medo por mim e por ela. Só que ra mais forte que eu!

De tanto ouvir que eu era "mulherzinha", pensava se eu, realmente, me sentia assim, uma mulher. Eu pegava os sapatos altos de mamãe e tentava calçá-los, mas meus pés eram enormes perto dos dela. Com aqueles sapatos menores que meus pés, eu me sentia "uma sapatão". Não sei qual a relação. Talvez, o fato de que precisaria de sapatos maiores. Enfim, calçado, me olhava no espelho e sentia/percebia que algo, ali, estava fora do normal. Eu era chamado de "mulherzinha" (palavreado que tanto me machucou por anos a fio, por toda infância e adolescência, até a idade adulta, quando reproduzia meu machismo e homofobia, sem se quer me dar conta disso), mas com sapatos de salto alto, eu sentia/percebia que eu não estava nesse lugar.

A primeira vez que senti atração por um homem? Lembro-me bem! Eu tinha 8 anos, assistia à novela Quatro por Quatro. A cena? Marcelo Novaes tomando banho e cantando "Metamorfose Ambulante", acho que é do seu Raul. Não tenho certeza! Siiiim! Marcelo Novaes foi o meu amor platônico da infância e da adolescência, ou como se diz hoje em dia, foi o meu primeiro crush. Mesmo envelhecido, ele continua lindo. (Nunca falei disso com mamãe, talvez, ela vá descobrir ao ler esse texto. Ela sempre lê o que escrevo. Ela sempre sendo maravilhosa!)

E qual o meu ídolo de infância? Xuxa! Até hoje ela é! Claro, eu nunca pude gostar dela. Na realidade, eu sempre fui proibido de demonstrar que eu gostava dela. Gostar da Xuxa era "coisa de viado"! Além disso, ela tinha feito lá o filme do fuscão preto, e isso era "porco, nojento, imundo", mas me forças a ver a Playboy, entre 7 e 14 anos, era "coisa de homem" e podia, né pai? Quer dizer, homem que contribuiu para a fecundação do óvulo de mamãe, mas que nunca ocupou esse posto! Seu verme! Querer ser "meu papai" quando eu tinha 21 anos, não vai apagar a memória de você querendo me bater por descobrir que eu fazia dança, em expulsar de casa a mim, mamãe e minhas irmãs, só por eu fazer dança, sabe? Não vai apagar da memória os quase 33 anos que vivi vendo minha mãe sendo sua vítima de violência doméstica, recebendo apertos no braço, xingamentos, humilhações em casa e em público, piadas difamatórias, em ser proibida de trabalhar porque "mulher sua tinha que ficar em casa te esperando", e vê-la te amando de forma desmedida, e aceitar sua exigências com medo de ser abandonada. Mulheres da época dela foram criadas para se submeterem a esses comportamentos, para não serem difamadas, pois casamento tinha de ser pro resto da vida, até que a morte os separe. O problema é que cresci vivendo com o medo de que quem ia separá-los, era a morte dela. Mas você faz parte do passado, os traumas que me deixou, doem até hoje e continuarão a doer, pelo jeito, mas sem sua presença a vida segue mais leve. Hoje, vejo o sorriso em mamãe que você nunca deixou ela ter. Vai ser doloroso, nos desgrudarmos de sua má influência, reconhecer que você ainda existe em nós e termos de destruir sua presença tóxica na gente, mas sobreviveremos! We will survive!

Hoje, eu, finalmente, posso ser quem eu sou. Trabalho, pago minhas contas, moro com mamãe, a quem não me enxergo sem estar ao meu lado, afinal, se eu estou aqui, sabe, é por causa dela. Há seis anos, Lara surgiu, e é a quem também devo estar aqui. Mamãe e Lara são as mulheres da minha vida, são as razões pelas quais quando pensei em desistir de mim, um lapso de consciência me fez lembrar que mamãe não merecia enterrar o filho, e Lara não merecia crescer sem o tio. Eu sou a única referência masculina não tóxica da vida da minha bebê, e eu não tenho direito de tirar isso dela.

Os sapatos de salto alto, já não me configuram como mulher, nem o mulherzinha, bichinha, marica, boiola, baitola, muito menos o viado me configuram como alguém inferior, como algo e não como ser humano. Eu me desconstruí, compreende? Sou viado, sim. Sou boiola, sim. Sou baitola, maricas, maricona (já estou velha, né!), bicha, bichinha, mulherzinha, sou tudo isso, e se você reclamar ou tentar me ofender, vou ser ainda mais afeminado, sabe porquê? Porque se estou aqui, é porque também milhares de bichas afeminadas, travestis, transexuais e transgêneros morreram para que eu pudesse ter meu lugar ao sol, e eu devo isso a todas, todos e todxs.

Hoje eu sou a Emma, a Victoria, a Mel B, Mel C, Geri. Sou a Madonna, em Erotica, a Madonna em Ray of Light. Sou a Licia, a Renata Abreu, a Marcelle Cristine, Cibele, Thisciane, Pamala, Luana, Carmen, Thalia, Toni Braxton, Whitney Houston, Carmem Miranda. Sou Audrey Hepburn (meu alter ego), Marilyn Monroe, Mileise, Andrea Snow, Samile, sou todas! Sou quem eu quiser. Sou mamãe, dona May, sou Lara!

PS: Homens gays, dificilmente, têm ídolos masculinos! O porque disso? Pergunte ao seu machismo, sexismo, misoginia e à sua lgbtqi+fobia!